Revista da Associação Médica Brasileira
Print version ISSN 0104-4230On-line version ISSN 1806-9282
Rev. Assoc. Med. Bras. vol.54 no.6 São Paulo Nov./Dec. 2008
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-42302008000600007
PONTO DE VISTACANCEROLOGIA
Medicina complementar e alternativa: uma prática comum entre os pacientes com câncer
Fabio LealI; Gilberto SchwartsmannI,II; Hiram Silveira LucasI
IHospital Mário Kroeff – Rio de Janeiro – RJ
IIHospital de Clínicas de Porto Alegre – RS
A medicina complementar e alternativa (MCA) é definida como um conjunto de sistemas, práticas e produtos de uso clínico, não considerado como prática médica convencional, de reconhecida eficácia pela comunidade científica. São exemplos de MCA o uso de ervas medicinais, os suplementos vitamínicos, as dietas especiais, a medicina chinesa, a homeopatia, as técnicas de relaxamento terapêutico e outros. Independente da existência ou não de sua comprovação científica, um fato é inquestionável: o uso de MCA em pacientes com câncer é muito elevado em qualquer sociedade1.
No Reino Unido, por exemplo, existem cerca de 50.000 profissionais que exercem alguma forma de MCA, sendo que cerca de cinco milhões de pessoas buscam anualmente este tipo de atendimento. Em 50% dos casos, a forma de MCA utilizada são as chamadas ervas medicinais. É de grande importância para nós, médicos, o fato de que em 2/3 dos casos o médico não é informado sobre esta prática2.
Nos EUA, estima-se que o mercado de MCA movimente cerca de 34 bilhões de dólares por ano, recursos estes gastos fora do sistema de saúde3. Em uma clínica privada de Oncologia na Cidade do México, um estudo realizado com 85 pacientes portadoras de câncer de mama revelou que o gasto mensal mediano por paciente, com estas práticas foi de US$ 345,5 (variação entre US$13,6 e US$ 2.545). As modalidades de MCA mais utilizadas nestes pacientes foram os suplementos vitamínicos e os tratamentos com ervas medicinais4.
Em um hospital universitário na Nigéria, 160 pacientes portadores de neoplasia foram entrevistados, com o objetivo de avaliar a prevalência do uso de MCA6. Em 65% dos casos, os pacientes confirmaram que faziam uso de MCA paralelamente ao tratamento convencional, sendo que as formas mais utilizadas foram ervas medicinais (51.9%). Neste estudo, mais de 50% dos pacientes não tinham mencionado à equipe médica o fato que utilizavam MCA5.
Em uma série consecutiva de 100 pacientes adultos, portadores de neoplasias malignas, atendidos no Hospital Mario Kroeff, na cidade do Rio de Janeiro, durante o ano de 2008, 65% dos casos revelaram fazer uso de MCA concomitantemente ao tratamento convencional, sem o conhecimento da equipe médica. Ervas medicinais (40%) e suplementos vitamínicos (17%) foram os tipos de MCA mais utilizadas por esta população (Leal F et al, comunicação pessoal).
Em resumo, dados da literatura sugerem fortemente que o uso de MCA é freqüente e usualmente omitido pelos pacientes durante a entrevista médica e de enfermagem. Da mesma forma, a equipe médica não parece incluir este tipo de questionamento durante as entrevistas com o paciente. Considerando a falta de informações consistentes sobre a segurança, eficácia e potenciais interações das várias formas de MCA com o tratamento convencional, parece-nos que este tema merece maior atenção por parte da comunidade científica.
Os produtos de origem natural estão entre as formas mais comuns de MCA utilizadas por pacientes com câncer. Ainda que exista no credo popular a idéia de que os produtos oriundos da natureza sejam, em princípio, isentos de riscos de toxicidade, isto não representa a realidade. Muitas vezes, os organismos vivos produzem substâncias destinadas a sua defesa contra predadores naturais, as quais podem ser extremamente tóxicas. Há exemplos de intoxicações severas em seres humanos, com uso empírico de preparações a base de salicilatos e digitalis6.
Além disso, as concentrações de uma substância natural com atividade farmacológica de interesse médico podem variar significativamente, na dependência de oscilações climáticas, presença de estresse ambiental ou simplesmente por variações fisiológicas, decorrentes de seu ciclo de desenvolvimento. Isto pode trazer não apenas riscos de toxicidade, como também o risco da utilização de concentrações inferiores àquelas associadas ao seu efeito terapêutico. Portanto, ganha-se muito mais do ponto de vista científico com o seu desenvolvimento através do método científico7.
Portanto, é fundamental que os pacientes e a equipe médica não confundam o papel da natureza como fonte ou inspiração para a descoberta e o desenvolvimento de novos fármacos, com o seu uso in natura, sem uma adequada avaliação de sua segurança e eficácia. Existem vários exemplos de agentes anticâncer de sucesso na prática clínica, inicialmente identificados a partir de fontes naturais. São exemplos os alcalóides da vinca, os taxanos e os derivados da camptotecina8,9. Mais recentemente, um novo agente anticâncer, a trabectedina ou ET-743, isolado de um tunicado de origem marinha, foi aprovado para uso em pacientes com sarcomas de partes moles refratários em vários países europeus10,11.
Os agentes acima mencionados tiveram como base uma substância natural, a qual permitiu que fossem realizados testes de suas propriedades farmacológicas, e posteriormente sofreram modificações químicas e farmacêuticas, as quais permitiram que se chegasse a um produto com características mais favoráveis ao uso em seres humanos. Em outras palavras, drogas anticâncer de sucesso, derivadas de fontes naturais, necessitam de uma boa dose de ciência para recomendação de uso clínico. Isto implica o isolamento de seu princípio ativo, a confirmação de sua atividade em modelos pré-clínicos, a realização de testes de avaliação de seu mecanismo de ação e de suas características farmacológicas, farmacodinâmicas e farmacêuticas12.
Muitas instituições acadêmicas e laboratórios da indústria farmacêutica costumam avaliar novos candidatos anticâncer de origem natural, através de testes de extratos semipurificados destes materiais, em painéis de tumores in vitro e, no caso de confirmação de atividade, em tumores implantados em animais8,9,12. Havendo a confirmação de sua atividade antiproliferativa nestes modelos, a fração ativa é submetida a refracionamentos e novos testes, até que se atinja um grau de pureza da fração ativa que permita a análise de sua estrutura química. A partir desta etapa, estudos envolvendo a caracterização de suas propriedades farmacológicas são implementados. Candidatos de interesse são então produzidos em quantidades suficientes para que sejam realizados estudos toxicológicos. Atualmente, a maioria dos laboratórios envolvidos no desenvolvimento de agentes anticâncer de origem natural tem como estratégia buscar a sua síntese química completa em laboratório, para melhorar a logística de seu desenvolvimento7,9,12.
A comunidade médica deve ter claro que histórias de sucesso com medicamentos cuja inspiração partiu de uma substância de origem natural não nos dá a autoridade para estimularmos o uso empírico de substâncias naturais para o tratamento de doenças em seres humanos, sem a devida comprovação científica de sua segurança, eficácia e reprodutibilidade.
Este conceito tem recebido críticas de alguns profissionais sérios da área da farmacologia de produtos naturais, os quais argumentam que a atividade biológica destes agentes deriva justamente da combinação de seus componentes em seu estado natural. Entretanto, há somente uma forma de comprovar a eficácia destas substâncias: a realização de estudos que utilizem o método científico7. Esta seria a nossa recomendação para aqueles profissionais que suspeitem da existência de algum valor terapêutico com alguma forma de MCA. Enquanto estas informações sobre a segurança, eficácia e potenciais interações com medicamentos de uso convencional não estiverem disponíveis, parece-nos inadequado que médicos dêem suporte ao uso empírico de MCA.
Isto não significa que nós, médicos, devamos menosprezar informações de quaisquer origens sobre efeitos terapêuticos de tratamentos considerados não-convencionais. Estas informações devem ser tratadas com seriedade e submetidas à uma avaliação científica criteriosa. Para tal, os testes em modelos experimentais e o desenho de estudos clínicos exploratórios devem ser a via a ser seguida. A sabedoria e o bom-senso sempre foram aliados da boa ciência. E isto permitiu que muitos medicamentos oriundos de fontes naturais fossem adequadamente desenvolvidos e hoje utilizados por milhões de pacientes no mundo8.
É importante que as motivações que levam os pacientes ao uso de MCA sejam consideradas. Talvez, isto sugira a existência de necessidades importantes dos seres humanos, as quais não estejam contempladas suficientemente pela nossa forma convencional de exercício médico. A observação de que o uso de MCA seja tão prevalente entre os nossos pacientes, sem que isto seja discutido seriamente com a equipe de saúde, é pelo menos um sintoma de algumas de nossas lacunas na relação médico-paciente.
Ficam alguns questionamentos sobre este tema para futuras discussões: a) Nós, médicos, continuaremos a ignorar a existência das diversas formas de MCA, mesmo considerando que mais de 50% dos nossos pacientes fazem uso destas estratégias terapêuticas não-convencionais? b) Há um real interesse na comunidade médica, no sentido da realização de estudos sobre a segurança, controle de qualidade, informação e aconselhamento quanto ao uso de MCA? c) Há motivação de parte da comunidade médica quanto ao estudo dos riscos e benefícios de MCA? d) Por que este tema é muitas vezes ignorado nas entrevistas com os pacientes? e) Quais as barreiras que existem em relação à discussão destas questões pela equipe de saúde?
Algumas pessoas consideram que nós, médicos, somos por vezes arrogantes nos assuntos que dizem respeito à vida. Certa vez, uma de nossas pacientes com câncer de mama comentou durante a consulta: “Vocês, oncologistas, pensam que a ciência explica tudo. Isto funciona bem até que vocês diagnosticam o seu próprio câncer e ficam iguais a nós, pacientes. Então, começam a buscar formas alternativas de reconquistar a fé nos milagres da vida, exatamente como nós, pacientes, costumamos fazer”. A nossa paciente pode ter a sua dose de razão. O certo é que o tema MCA deveria receber mais atenção e um olhar menos arrogante da comunidade médica.
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